terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A correção

A história da desajustada família Lambert e uma laparoscopia. Para mim, duas realidades completamente dissociáveis. Para sempre.
Os Lambert estão no centro do livro As Correções, de Jonathan Franzen. O calhamaço com 600 páginas e, consequentemente, os Lambert, foram meus fieis companheiros durante o processo de recuperação do procedimento cirúrgico que arrancou fora o meu rim esquerdo. Daí a associação.
Eu soube do livro há apenas alguns dias, pelo blog do Zeca Camargo. Ele falou da obra quando falava, na verdade, do filme francês Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin. De tão irresistível que me parecera a ideia do filme, no mesmo dia em que li o texto corri para um daqueles cinemas caros e descolados de São Paulo onde ele estava sendo exibido em uma única sessão por dia. Com pouca paciência, 150 minutos mais tarde, cheguei à conclusão de que o esforço não valera a pena; e de que eu devo gastar menos dinheiro com amenidades.
No texto em seu blog, Zeca dizia que o filme o fizera lembrar “um dos seus livros favoritos de todos os tempos”. Foi o bastante para que a minha curiosidade pelo tal livro - esse As Correções - se vertesse em algo irresistível. A sorte de encontrar um exemplar novo da obra, por um terço do seu preço de tabela, em um sebo virtual, foi o momento derradeiro.
Basicamente, tanto o filme quanto o livro tratam sobre reuniões de Natal. No caso de As Correções, o fio condutor da história está na preparação de um Natal contada por narrativas individuais sobre cada membro de uma família americana do Meio-Oeste – os Lambert. Já o caso de Um Conto de Natal é assunto para aquelas insuportáveis mesas de debate em cinemas de arte.
Logo no início, as duas frases que abrem o livro dão o tom do texto com que Franzen irá expor a crise de valores dos Lambert: A loucura de uma frente fria de outono avançando pela pradaria. Dava para sentir: alguma coisa terrível a ponto de acontecer. No entanto, apesar do início arrebatador causado pela primeira dezena de páginas, em um segundo momento a obra esteve à beira de frustrar minhas melhores expectativas. Por um longo momento.
Muito provavelmente porque, já na leitura dos textos da orelha e da quarta página, tudo conspirava para que eu acreditasse ser esse o novo livro da minha vida. Uma família definhando, personagens escolhidos a dedo, um texto primoroso. Tudo a favor.
Mas a história é longa. Muito, muito longa. Tanto que eu só consegui me conformar com a extensão do conto quando estava a 100 páginas do final. Foi quando eu senti, de fato, minha pressão arterial se render ao ritmo do desfecho alucinante da história. Ali, onde tudo descamba no tão aguardado Natal em Saint Jude, evento que a perturbada matriarca da família, Enid, planeja durante toda a história, eu me rendi definitiva e completamente. E finalmente concordei que o extremo detalhismo de todo o romance serve para que o leitor chegue no principal momento do livro íntimo e apaixonado por cada um dos incríveis personagens criados por Franzen.
O efeito do seu experimentalismo é arrebatador. E olha que arrebatar um leitor com a barriga inchada por gases injetados artificialmente – exigência do procedimento, me garantiram – não é pouca coisa. Some a isso uma dúzia de pontos que parecem a um passo de estourar e dor, muita dor.

Em um determinado momento da história de As Correções, Alfred, o patriarca da família Lambert, despenca do oitavo andar de um transatlântico em pleno oceano. Arrebentado, ele diz que a única coisa que teve ferida na tragédia foi a sua dignidade. Fora do livro, o incômodo de uma sonda de borracha atravessando minha uretra até a bexiga me faz rever questões acerca de dignidade. Uma espécie de dignidade que tem a ver com a perda de um rim com pouco mais de 60 centímetros cúbicos e o uso de uma camisola velha da Santa Casa de Misericórdia de Ribeirão Preto.
Mas voltando à história de As Correções, eu diria que a coisa começa a ficar boa mesmo a duas linhas do penúltimo capítulo: Um Último Natal. Na página 471, as frases que encerram o capítulo anterior a esse dão um nó no estômago que só será desamarrado bem mais à frente. Mas já (bem) antes disso, na 475, a tragédia do Natal da pobre Enid começa para valer. Seja no seu neurótico ritual de escrever dezenas de cartões de Natal ou na melancólica contemplação das janelas de sua casa, onde ela “tem uma aparência menos real do que gostaria”, a matriarca dos Lambert rouba para si uma história permeada por tantos bons personagens.
Ao final, descobrimos, tão fracassados quanto ela, que toda a correção de Enid tinha sido em vão. É ali, no último parágrafo, ainda que o fracasso de tudo já não fosse mais novidade, que nossas convicções daquilo que é ideal em uma vida imperfeita escorrem pelo ralo. Feito excrementos de uma nefrectomia ou gases sujas de sangue.
Com um humor tão desconcertante e personagens tão profundos, dá até para pensar que estamos diante de gente de carne e osso em As Correções. Um livro que de tão perfeito chega a dar pena de ter que associá-lo a um evento marcado por mangueiras finas por onde escorrem soro e analgésicos. Ou por enfermeiras que falam alto.
No livro, o começo é fantástico e o final arrebatador. Do outro lado da história, a dor é latejante – e graças a Deus decrescente - onde antes havia um rim.
Agora, é só um vazio que arde e apunhala. Como aqueles que a infelicidade cria roubando os sonhos despedaçados de gente dada ao fracasso. De gente com o sobrenome Lambert. De gente como eu e você.

*A primeira imagem é a reprodução de uma ultra-sonografia do meu pequeno esquerdista antes da sua extração. A segunda é uma fotografia do autor de As Correções, Jonathan Franzen.

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