segunda-feira, 9 de julho de 2012

A Visita Cruel do Tempo vs. Pulp Fiction


“A Visita Cruel do Tempo” é o melhor livro que o Nick Hornby não escreveu. E tem o enredo mais difícil de ser definido desde a última série do Luiz Fernando Carvalho. Gosto da explicação da editora brasileira para o “duro desafio linguístico” de transpor o intraduzível título original para o português: a solução foi encontrar um título que interpretasse “os efeitos do impiedoso personagem central da trama, o tempo”.

É provável que o título nacional seja melhor que qualquer outro título dado ao livro em qualquer lugar do mundo. E que sozinho ele diga mais sobre o seu enredo que qualquer resenha acadêmica de jornal.

Em “Irreversível”, melhor exemplo de cinema francês possível, Gaspar Noé repetia que o tempo destrói tudo. E é também sobre isso que trata o livro da Jennifer Egan. Há uma passagem na história, em especial, que esbugalha esse sentimento. Na edição brasileira o trecho vem destacado já na folha de rosto do livro:


Ouvindo sobre as inspirações da autora para a história (Marcel Proust, "Família Soprano", "Pulp Fiction") fica fácil concluir como qualquer coisa que fosse resultado disso, somada à forma como essa mulher consegue elaborar um texto, não poderia resultar em algo menos que formidável.

A questão é que tudo o que importa sobre o livro já foi dito. E eu só vim até aqui para falar que revendo "Pulp Fiction" ontem (e concluindo que ele é muito melhor do que eu poderia supor há 17 anos), uma das minhas cenas favoritas do filme me chamou especial atenção: quando o mafioso Marsellus está tentando convencer o boxeador Butch (Bruce Willis) a aceitar a proposta de perder uma luta. Em um bar vazio, Marsellus fala para Butch:

"O negócio, Butch, é que neste momento você tem habilidades.
Mas, por mais doloroso que seja, a habilidade não dura. 
E seus dias estão se acabando.
É a difícil realidade dessa merda. 
Mas é uma realidade que você terá que aceitar.
Esse negócio está saturado de irrealistas filhos da puta. 
Filhos da puta que pensavam que envelheceriam como o vinho. 
Se pensar em termos de vinagre... até acontece. 
Se acha que fica melhor com a idade... não acontece."


É como se Marsellus tivesse lido “A Visita Cruel do Tempo” antes mesmo de sua concepção.

O tempo é cruel, não é? O tempo destrói tudo. Quentin Tarantino, Jennifer Egan, Gaspar Noé, eu, você e os 500 milhões de amigos do Mark Zuckerberg sabemos disso. Mas não custa repetir.

[A primeira imagem foi copiada de uma postagem no site da editora Intrínseca]

terça-feira, 3 de julho de 2012

Uma história de amor com Paul McCartney no meio

Lennon sobre o dia em que conheceu Paul, em 1957: 
“Aquele foi o dia que as coisas começaram a se mover”

[Ela está na poltrona do corredor. A minha é a da janela. Ela está conversando com um casal na fileira de trás. Eu peço licença, ela dá. Sento no meu lugar. Ela está contando para o casal o motivo da sua viagem. Já foi a quatro ou cinco shows dele antes. Um deles em Liverpool, onde (me parece) ele chegou a falar com ela. É manhã de sexta-feira, chegaremos a Recife na hora do almoço. Ela está indo sozinha e quer ir à praia no mesmo dia. No sábado e no domingo vai ao show. Quer chegar na fila pela manhã bem cedo. Quer tentar subir no palco, conhecê-lo.

Um cara senta entre nós, o avião decola. Eles conversam. Ela lê “Tom Sawyer”, do Mark Twain, em inglês. Cochila. Ouve música. Fecha os olhos e mexe os lábios cantando baixinho. Lê mais um pouco. Conversa mais um pouco com o vizinho. Cochila de novo. Penso descobrir tudo sobre sua vida em duas horas e meia de voo. É professora (ou trabalha em uma escola) e está participando de uma espécie de “jogo de emagrecer” com as colegas no trabalho. Todo mês cada uma deposita um valor em uma conta. Ao final, a que conseguir os melhores resultados na balança vai ganhar o dinheiro arrecadado. Ela já me parece magra o bastante, mas eu não falo isso para ela. Ela tem os cabelos compridos e é bonita. Eu também gosto dele e também já fui a Liverpool, mas ela não sabe disso. Quero conhecê-la, encontrá-la em Recife, viajar com ela da próxima vez. Casar com ela.

O avião aterrisa. Ouço recados urgentes em minha caixa postal. Encontro minha amiga que foi me buscar, sento em um banco no saguão do aeroporto, abro meu laptop e começo a resolver problemas de trabalho pelas próximas horas. Já nem me lembro que perdi a mulher da minha vida de vista em uma fração de segundos.]


Eu gosto cada dia mais do Paul McCartney. Gosto tanto que me dá uma tristeza pensar no tanto de tempo que eu perdi ignorando sua existência. Em 2010 eu morava em São Paulo quando aconteceram os shows no Morumbi e se eu senti alguma vontade de ir foi porque eu sempre quero ir a shows (sejam eles de quem for). No ano seguinte, no Rio, nem considerei a possibilidade.

Em Recife, este ano, eu decidi que iria. Eu tinha vontade de conhecer a cidade e poderia aproveitar para visitar um casal de amigos que se mudara para lá -e me hospedar em sua casa. As passagens eu pegaria com milhas do cartão de crédito. Por último: eu queria ver o show –tanto quanto eu iria querer ver um show da Madonna, do Ringo Starr ou, sei lá, do Coldplay. A questão toda é que eu comprei o ingresso pela internet na primeira hora de venda. E desde então fui começando a morrer de amor pelo Paul dia após dia. Vídeo do YouTube após vídeo do YouTube.

O repertório que ele tinha à disposição era uma covardia. No palco, seu entusiasmo parecia algo entre "rockstar adolescente" e "monitor de acampamento colegial". Isso sem falar nos ternos mais bem cortados da realeza britânica e no tanto que ele fica mais parecido com o Quico do Chaves conforme os anos vão passando. Eu queria dar um abraço no Paul McCartney e não largar nunca mais.

Primeiro os Beatles foram para mim só uma banda a quem alguns acusavam o Oasis de copiar. O Oasis, a maior banda da história da música. Eles sim o “meu Beatles”. 

O primeiro beatle que eu conheci foi o John Lennon. Aos 14 anos, em 1995, ganhei o livro “O Jovem Lennon”, do Jordi Sierra i Fabra, em uma promoção do Caderno 2 do Estadão. Por um milhão de motivos esse livro marcou a minha vida. Meu primeiro emprego, as coisas escorregando pelo despenhadeiro. Algumas passagens ali ficaram para sempre. A principal delas: quando a mãe do Lennon morre atropelada. Depois desse dia, perder minha mãe atropelada passou a ser um temor gigantesco. Até hoje chego a me aterrorizar com a possibilidade dela atravessar qualquer rua movimentada sozinha –mesmo estando, é bom que se diga, em plena posse de suas faculdades físicas e mentais.

No começo de 2012, mais de quinze anos depois de ler o livro, eu finalmente fui a Liverpool. Fiz o passeio no ônibus amarelo pelos pontos que marcaram a história dos Beatles. Fui lembrando de passagens do livro. Parei em frente às docas, imaginei o jovem Lennon ali. O frio congelava os meus ossos e o vento me desequilibrava –apesar dos meus mais de 100 quilos. Era manhã de domingo e não havia uma única viva alma ao redor com quem eu pudesse dividir aquela maravilhosa sensação de ter o rosto cortado por uma rajada de navalhas em forma de ventania. Comecei a flutuar. Primeiro o frio na barriga, depois uma sensação inexplicável. A emoção de quando a gente sai pedalando a bicicleta sem as rodinhas pela primeira vez. Eu no ponto mais alto do mundo, sozinho e indefensável. A dezenas de milhares de quilômetros de casa. No pico do meu Everest.

Meses depois, às vésperas do meu primeiro show do Paul, lembro de um vídeo no YouTube. Ele chegando ao estádio do Morumbi para o seu primeiro show em São Paulo, dois anos antes, com o corpo para fora da janela do carro, abanando a mão para os fãs na fila. Sorrindo como se fosse o cara mais feliz do mundo.

Não sei exatamente onde fica o ponto de virada. Não me lembro em que momento da vida foi que Paul McCartney virou meu beatle favorito. Há poucos dias, assistindo ao filme “O Garoto de Liverpool”, sobre a juventude do John Lennon, a morte de sua mãe apunhala o meu estômago de novo. Mas dessa vez é uma cena no velório dela, quando Lennon e Paul se abraçam no meio da rua, depois que o primeiro deu um soco na cara do segundo. Sinto um frio na espinha tão inexplicável e indescritível quanto aquele em Liverpool. O Paul McCartney do meu filme, aquele que abraça o John Lennon com a firmeza de quem se agarra a um galho de árvore na enchente, é o melhor amigo que alguém pode ter. John Lennon é um chato e eu começo a me perguntar "como foi que eu pude me deixar enganar por tanto tempo?".

Em Ribeirão Preto, anos depois de ler “O Jovem Lennon”,  dois eventos em shoppings da cidade me ensinaram tudo o que eu não aprendi sobre os Beatles com o livro do Jordi Sierra i Fabra. Primeiro uma exposição de imagens e objetos sobre a história do grupo, com shows diários de uma banda cover formada por tiozinhos que se gabavam de já terem se encontrado com cada um dos quatro “originais”. A cada show eles convidavam pessoas da plateia para subirem ao palco e cantar junto com a banda. Foi em uma dessas apresentações que eu ouvi “Strawberry Fields Forever” pela primeira vez.

Poucas semanas depois, em outro shopping da cidade, houve um concurso de bandas covers em que a campeã ganharia uma viagem para tocar no Cavern Club, em Liverpool. Fui a todas as eliminatórias. Conheci as músicas, aprendi sobre as diferentes fases do grupo. A banda para a qual eu estava torcendo, The Beatless, de Rio Claro (SP), foi a campeã. Depois de algum tempo seus integrantes formaram uma banda chamada Gram, que chegou a lançar CDs com repertório próprio e fazer algum sucesso na MTV.

De volta a Recife, a história do meu primeiro show do Paul McCartney pode ser bem resumida. Problemas em casa, a muitos quilômetros dali, um desencontro com um grupo de amigos que eu iria encontrar na porta do show e uma pista VIP imensa que deixava a pista comum (lugar onde eu estava) a quilômetros de distância do palco com uma torre de som tapando 80% da minha visão do palco comprometeram bastante o resultado do show para mim. A plateia apática também não ajudou.

O show foi lindo, claro. Mas a verdade é que tudo aconteceu de verdade mesmo no dia seguinte. Eu não ia ao show. Parte do grupo que tinha ido no sábado comigo já estava voltando para as suas cidades. Eu e o casal que me hospedou fomos almoçar em um bar em frente à Praia de Boa Viagem.

Junto com uma porção de guaiamus o garçom trouxe a oferta do dia: dois ingressos de pista para o show do Paul daquela noite para quem comprasse uma garrafa de Red Label. Parece que as vendas não iam bem e a organização estava tentando caminhos alternativos para lotar o estádio. Minha amiga amarelou. O marido dela e eu topamos. Pegamos os ingressos mas combinamos de tentar conseguir entradas a preços mais generosos para a pista premium, bem em frente ao palco –em algum lugar de Recife deveria haver uma promoção similar com ingressos para esse setor ou mesmo um cambista desesperado para desovar suas entradas.

A primeira parada foi no hotel onde o Paul estava (“sempre há cambistas onde há fãs”). Nenhum sinal de comércio ilegal. Acabamos nos juntamos à multidão na rua e esperamos por quase duas horas até a hora do Paul sair para o estádio -quando ele apareceu abanando as mãos e mandando beijos pela janela do carro como se fôssemos todos velhos amigos. Como eu já amo esse cara, meu Deus!

À noite fomos mais cedo para a porta do estádio. Em uma transação abaixo de qualquer suspeita negociamos os ingressos que ganhamos com o whisky mais algum troco e compramos duas entrada para a pista premium de um cambista. As horas seguintes entraram para a lista de melhores momentos da minha vida. É sério.

Resenhar o show de uma lenda como Paul McCartney aqui não traria nada de novo para o debate.  Dizer que um show dele é uma “experiência inesquecível” é um lugar comum –em especial depois de tudo o que eu já disse. Dias depois, li na Folha de S. Paulo uma crítica sobre o show dele em Florianópolis, na mesma semana, dizendo que “um show de Paul McCartney é, de fato, uma experiência à altura da lenda”. “É sempre a mesma fórmula”, dizia o repórter. “Mas não dá para acusar a genialidade de ser repetitiva.”

O show de domingo foi obviamente diferente do de sábado –um tanto pela diferença quilométrica de nossa distância do palco, um tanto pelo meu estado de espírito. Foram sensações distintas. Da parte do artista, o show foi menor –ele cantou menos músicas. Da parte do público, a apatia era ainda maior –não teve os flashmobs do dia anterior (nada de balões, máscaras ou cartazes escritos “Na” durante o coro de “Hey Jude”).

Em "A Day in the Life", mais adiante, três homens de braços dados chorando de soluçar me fazem chorar junto. Depois ainda chorei de novo mais algumas vezes. Meu segundo show do Paul McCartney até hoje me deixa com os cabelos dos braços arrepiados só de lembrar. Uma experiência não apenas à altura da lenda, mas muito além de qualquer explicação.

Aposto como aqueles foram só os meus dois primeiros shows do Paul de muitos ainda. E eu só espero que em cada um dos próximos eu fique de novo perto o suficiente para sentir na cara o calor dos fogos que explodem no palco quando ele canta "Live and Let Die" no piano. Para esgoelar a letra de “Let Me Roll It” como se o mundo fosse acabar para sempre bem ali. 

Até hoje fecho os olhos e lembro dele cantando “I can't tell you how i feel” (não posso lhe contar como me sinto), em “Let Me Roll It”, como se soubesse do que estava se passando comigo. De lá para cá já ouvi essa música umas 327 vezes. Assistir a vídeos dela no computador do meu trabalho ainda fazem com que eu tenha que travar uma verdadeira batalha para não começar a chorar de passar vexame.

Ainda não consigo contar como me sinto, mas provavelmente ninguém entenderia mesmo.

Noel Gallagher, é você? 

[Na parte final do segundo show, Paul recebe alguns fãs no palco. Estou bebendo cerveja com meu amigo. Agora é a vez de uma menina conversar com Paul. Eu não estou olhando. Ele pergunta o nome dela, ela responde no microfone. Ele pergunta de onde ela é, ela diz “Brasília”. Ouvir o nome da cidade onde eu moro me chama a atenção. Meu amigo sorri para mim, sem desconfiar que é aquela a menina que veio sentada praticamente ao meu lado no avião. A menina de quem eu lhe falei nos últimos três dias sem parar. Assim que eu a reconheço, conto para ele. Ele não acredita. Eu também não acreditaria. Ela pede para Paul autografar seu braço.

Um dia depois, em Brasília, ela aparece na televisão em uma reportagem sobre o show. Descubro seu nome, busco no Facebook. Envio uma mensagem. Nenhuma resposta. Envio outra mensagem dois dias depois, não me responde. Minha eterna mania de não conversar com estranhos no avião me roubou a chance de conhecer a mulher da minha vida a caminho de Recife. Paul McCartney me fez perdê-la para sempre.]