Lennon sobre o dia em que conheceu Paul, em 1957:
“Aquele foi o dia que as
coisas começaram a se mover”
[Ela está na poltrona do corredor. A minha é a da
janela. Ela está conversando com um casal na fileira de trás. Eu peço licença,
ela dá. Sento no meu lugar. Ela está contando para o casal o
motivo da sua viagem. Já foi a quatro ou cinco shows dele antes. Um deles em
Liverpool, onde (me parece) ele chegou a falar com ela. É manhã de sexta-feira,
chegaremos a Recife na hora do almoço. Ela está indo sozinha e quer ir à praia
no mesmo dia. No sábado e no domingo vai ao show. Quer chegar na fila pela
manhã bem cedo. Quer tentar subir no palco, conhecê-lo.
Um cara senta entre nós, o avião decola. Eles
conversam. Ela lê “Tom Sawyer”, do Mark Twain, em inglês. Cochila. Ouve música.
Fecha os olhos e mexe os lábios cantando baixinho. Lê mais um pouco. Conversa
mais um pouco com o vizinho. Cochila de novo. Penso descobrir tudo sobre sua vida em duas horas e
meia de voo. É professora (ou trabalha em uma escola) e está participando de
uma espécie de “jogo de emagrecer” com as colegas no trabalho. Todo mês cada
uma deposita um valor em uma conta. Ao final, a que conseguir os melhores
resultados na balança vai ganhar o dinheiro arrecadado. Ela já me parece magra
o bastante, mas eu não falo isso para ela. Ela tem os cabelos compridos e é bonita. Eu também gosto dele e também já fui a Liverpool, mas
ela não sabe disso. Quero conhecê-la, encontrá-la em Recife, viajar com ela da
próxima vez. Casar com ela.
O avião aterrisa. Ouço recados urgentes em minha caixa
postal. Encontro minha amiga que foi me buscar, sento em um banco no saguão do aeroporto,
abro meu laptop e começo a resolver problemas de trabalho pelas próximas horas.
Já nem me lembro que perdi a mulher da minha vida de vista em uma fração de
segundos.]
Eu gosto cada dia mais do Paul McCartney. Gosto tanto
que me dá uma tristeza pensar no tanto de tempo que eu perdi ignorando sua existência. Em 2010 eu morava em São Paulo quando aconteceram os shows no Morumbi
e se eu senti alguma vontade de ir foi porque eu sempre quero ir a shows (sejam
eles de quem for). No ano seguinte, no Rio, nem considerei a possibilidade.
Em Recife, este ano, eu decidi que iria. Eu tinha vontade de conhecer a cidade e poderia
aproveitar para visitar um casal de amigos que se mudara para lá -e me hospedar
em sua casa. As passagens eu pegaria com milhas do cartão de crédito. Por
último: eu queria ver o show –tanto quanto eu iria querer ver um show da
Madonna, do Ringo Starr ou, sei lá, do Coldplay. A questão toda é que eu comprei o ingresso pela
internet na primeira hora de venda. E desde então fui começando a morrer de
amor pelo Paul dia após dia. Vídeo do YouTube após vídeo do YouTube.
O repertório que ele tinha à disposição era uma covardia. No palco, seu entusiasmo parecia algo entre "rockstar adolescente" e "monitor de acampamento colegial". Isso sem falar nos ternos mais bem cortados da realeza britânica e no tanto que ele fica mais parecido com o Quico do Chaves conforme os anos vão passando. Eu queria dar um abraço no Paul McCartney e não largar nunca mais.
O repertório que ele tinha à disposição era uma covardia. No palco, seu entusiasmo parecia algo entre "rockstar adolescente" e "monitor de acampamento colegial". Isso sem falar nos ternos mais bem cortados da realeza britânica e no tanto que ele fica mais parecido com o Quico do Chaves conforme os anos vão passando. Eu queria dar um abraço no Paul McCartney e não largar nunca mais.
Primeiro os Beatles foram para mim só uma banda a quem
alguns acusavam o Oasis de copiar. O Oasis, a maior banda da história da
música. Eles sim o “meu Beatles”.
O primeiro beatle que eu conheci foi o John Lennon. Aos
14 anos, em 1995, ganhei o livro “O Jovem Lennon”, do Jordi Sierra i Fabra, em
uma promoção do Caderno 2 do Estadão. Por um milhão de motivos esse livro
marcou a minha vida. Meu primeiro emprego, as coisas escorregando pelo
despenhadeiro. Algumas passagens ali ficaram para sempre. A principal delas:
quando a mãe do Lennon morre atropelada. Depois desse dia, perder minha mãe
atropelada passou a ser um temor gigantesco. Até hoje chego a me aterrorizar
com a possibilidade dela atravessar qualquer rua movimentada sozinha –mesmo
estando, é bom que se diga, em plena posse de suas faculdades físicas e
mentais.
No começo de 2012, mais de quinze anos depois de ler o
livro, eu finalmente fui a Liverpool. Fiz o passeio no ônibus amarelo pelos
pontos que marcaram a história dos Beatles. Fui lembrando de passagens do
livro. Parei em frente às docas, imaginei o jovem Lennon ali. O frio congelava
os meus ossos e o vento me desequilibrava –apesar dos meus mais de 100 quilos.
Era manhã de domingo e não havia uma única viva alma ao redor com quem eu
pudesse dividir aquela maravilhosa sensação de ter o rosto cortado por uma rajada de navalhas em forma de ventania. Comecei a flutuar. Primeiro o frio na barriga, depois uma
sensação inexplicável. A emoção de quando a gente sai pedalando a bicicleta sem
as rodinhas pela primeira vez. Eu no ponto mais alto do mundo, sozinho e
indefensável. A dezenas de milhares de quilômetros de casa. No pico do meu
Everest.
Meses depois, às vésperas do meu primeiro show do
Paul, lembro de um vídeo no YouTube. Ele chegando ao estádio do Morumbi para o seu primeiro show em São Paulo, dois
anos antes, com o corpo para fora da janela do carro, abanando a mão para os
fãs na fila. Sorrindo como se fosse o cara mais feliz do mundo.
Não sei exatamente onde fica o ponto de virada. Não me
lembro em que momento da vida foi que Paul McCartney
virou meu beatle favorito. Há poucos dias, assistindo ao filme “O Garoto de
Liverpool”, sobre a juventude do John Lennon, a morte de sua mãe apunhala o meu
estômago de novo. Mas dessa vez é uma cena no velório dela, quando Lennon e
Paul se abraçam no meio da rua, depois que o primeiro deu um soco na cara do
segundo. Sinto um frio na espinha tão inexplicável e indescritível quanto
aquele em Liverpool. O Paul McCartney do meu filme, aquele que abraça o John
Lennon com a firmeza de quem se agarra a um galho de árvore na enchente, é o
melhor amigo que alguém pode ter. John Lennon é um chato e eu começo a me
perguntar "como foi que eu pude me deixar enganar por tanto tempo?".
Em Ribeirão Preto, anos depois de ler “O Jovem Lennon”, dois eventos em shoppings da cidade me
ensinaram tudo o que eu não aprendi sobre os Beatles com o livro do Jordi
Sierra i Fabra. Primeiro uma exposição de imagens e objetos sobre a
história do grupo, com shows diários de uma banda cover formada por tiozinhos que se
gabavam de já terem se encontrado com cada um dos quatro “originais”. A cada
show eles convidavam pessoas da plateia para subirem ao palco e cantar junto
com a banda. Foi em uma dessas apresentações que eu ouvi “Strawberry Fields
Forever” pela primeira vez.
Poucas semanas depois, em outro shopping da cidade,
houve um concurso de bandas covers em que a campeã ganharia uma viagem para
tocar no Cavern Club, em Liverpool. Fui a todas as eliminatórias. Conheci as
músicas, aprendi sobre as diferentes fases do grupo. A banda para a qual eu
estava torcendo, The Beatless, de Rio Claro (SP), foi a campeã. Depois de algum
tempo seus integrantes formaram uma banda chamada Gram, que chegou a lançar CDs
com repertório próprio e fazer algum sucesso na MTV.
De volta a Recife, a história do meu primeiro show do Paul
McCartney pode ser bem resumida. Problemas em casa, a muitos quilômetros dali,
um desencontro com um grupo de amigos que eu iria encontrar na porta do show e
uma pista VIP imensa que deixava a pista comum (lugar onde eu estava) a
quilômetros de distância do palco com uma torre de som tapando 80% da minha visão
do palco comprometeram bastante o resultado do show para mim. A plateia apática
também não ajudou.
O show foi lindo, claro. Mas a verdade é que tudo
aconteceu de verdade mesmo no dia seguinte. Eu não ia ao show. Parte do grupo
que tinha ido no sábado comigo já estava voltando para as suas cidades. Eu e o
casal que me hospedou fomos almoçar em um bar em frente à Praia de Boa Viagem.
Junto com uma porção de guaiamus o garçom trouxe a
oferta do dia: dois ingressos de pista para o show do Paul daquela noite para
quem comprasse uma garrafa de Red Label. Parece que as vendas não iam bem e a
organização estava tentando caminhos alternativos para lotar o estádio. Minha
amiga amarelou. O marido dela e eu topamos. Pegamos os ingressos mas combinamos
de tentar conseguir entradas a preços mais generosos para a pista premium, bem
em frente ao palco –em algum lugar de Recife deveria haver uma promoção similar
com ingressos para esse setor ou mesmo um cambista desesperado para desovar
suas entradas.
A primeira parada foi no hotel onde o Paul estava
(“sempre há cambistas onde há fãs”). Nenhum sinal de comércio ilegal. Acabamos
nos juntamos à multidão na rua e esperamos por quase duas horas até a hora do
Paul sair para o estádio -quando ele apareceu abanando as mãos e mandando beijos pela janela do carro como
se fôssemos todos velhos amigos. Como eu já amo esse cara, meu Deus!
À noite fomos mais cedo para a porta do estádio. Em
uma transação abaixo de qualquer suspeita negociamos os ingressos que ganhamos
com o whisky mais algum troco e compramos duas entrada para a pista premium de
um cambista. As horas seguintes entraram para a lista de melhores momentos da
minha vida. É sério.
Resenhar o show de uma lenda como Paul McCartney aqui
não traria nada de novo para o debate.
Dizer que um show dele é uma “experiência inesquecível” é um lugar comum
–em especial depois de tudo o que eu já disse. Dias depois, li na Folha de S.
Paulo uma crítica sobre o show dele em Florianópolis, na mesma semana, dizendo
que “um show de Paul McCartney é, de fato, uma experiência à altura da lenda”.
“É sempre a mesma fórmula”, dizia o repórter. “Mas não dá para acusar a
genialidade de ser repetitiva.”
O show de domingo foi obviamente diferente do de
sábado –um tanto pela diferença quilométrica de nossa distância do palco, um
tanto pelo meu estado de espírito. Foram sensações distintas. Da parte do
artista, o show foi menor –ele cantou menos músicas. Da parte do público, a
apatia era ainda maior –não teve os flashmobs do dia anterior (nada de balões,
máscaras ou cartazes escritos “Na” durante o coro de “Hey Jude”).
Em "A Day in the Life", mais adiante, três homens
de braços dados chorando de soluçar me fazem chorar junto. Depois ainda chorei de novo mais algumas vezes. Meu segundo show do Paul McCartney até
hoje me deixa com os cabelos dos braços arrepiados só de lembrar. Uma
experiência não apenas à altura da lenda, mas muito além de qualquer
explicação.
Aposto como aqueles foram só os meus dois primeiros shows do Paul de muitos ainda. E eu só espero que em cada um dos próximos eu fique de novo perto o suficiente para sentir na cara o calor dos fogos que explodem no palco quando ele canta "Live and Let Die" no piano. Para esgoelar a letra de “Let Me Roll It” como se o mundo fosse acabar para sempre bem ali.
Aposto como aqueles foram só os meus dois primeiros shows do Paul de muitos ainda. E eu só espero que em cada um dos próximos eu fique de novo perto o suficiente para sentir na cara o calor dos fogos que explodem no palco quando ele canta "Live and Let Die" no piano. Para esgoelar a letra de “Let Me Roll It” como se o mundo fosse acabar para sempre bem ali.
Até hoje fecho os olhos e lembro dele cantando “I can't tell
you how i feel” (não posso lhe contar como me sinto), em “Let Me Roll It”, como
se soubesse do que estava se passando comigo. De lá para cá já ouvi essa música
umas 327 vezes. Assistir a vídeos dela no computador do meu trabalho ainda fazem com que eu tenha que travar uma verdadeira batalha para não começar a chorar de passar vexame.
Ainda não consigo contar como me sinto, mas provavelmente ninguém entenderia mesmo.
Ainda não consigo contar como me sinto, mas provavelmente ninguém entenderia mesmo.
[Na parte final do segundo show, Paul recebe alguns fãs
no palco. Estou bebendo cerveja com meu amigo. Agora é a vez de uma menina conversar com Paul. Eu não estou olhando.
Ele pergunta o nome dela, ela responde no microfone. Ele pergunta de onde ela
é, ela diz “Brasília”. Ouvir o nome da cidade onde eu moro me chama a atenção.
Meu amigo sorri para mim, sem desconfiar que é aquela a menina que veio sentada
praticamente ao meu lado no avião. A menina de quem eu lhe falei nos últimos
três dias sem parar. Assim que eu a reconheço, conto para ele. Ele não acredita.
Eu também não acreditaria. Ela pede para Paul autografar seu braço.
Um dia depois, em Brasília, ela aparece na televisão
em uma reportagem sobre o show. Descubro seu nome, busco no Facebook. Envio uma
mensagem. Nenhuma resposta. Envio outra mensagem dois dias depois, não me
responde. Minha eterna mania de não conversar com estranhos no avião me roubou
a chance de conhecer a mulher da minha vida a caminho de Recife. Paul McCartney
me fez perdê-la para sempre.]
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