sexta-feira, 11 de abril de 2008

O peso das horas

Em um primeiro momento, meu avô foi para mim apenas o homem de cabelos de neve que morava na segunda casa de um velho beco. A casa da calçada quadriculada, do muro baixo e árvore gigante, cuja sombra atravessava a varanda e invadia a sala. Depois, ele foi aquele que me levava para cortar o cabelo, de ônibus elétrico, e comprava pão de queijo para mim. Também foi o que me entregava o almoço no trabalho. E tantos outros em outros tempos. Sempre grande, porque as pessoas são para nós exatamente do tamanho das lembranças que guardamos delas.
Depois de crescer eu descobri que o meu avô não era cada um desses separadamente. Antes de tudo, ele era alguém que ocupava diversas lacunas em cada uma das pessoas que eu fui durante a vida. Porque somos todos repletos de lacunas. E em cada momento de nossas vidas encontramos pessoas que preenchem o tamanho exato de cada um desses vazios. Para o bem ou para o mal.
Diferentemente do que acontece em mim, aos poucos as lacunas que outrora eu preenchi no cérebro do meu avó vão se apagando. As minhas e as de todos os outros. Suas memórias vão desaparecendo feito o brilho das velhas fotografias sobre a cômoda no quarto.
Ele é um homem cujo cérebro vem sofrendo degenerações. Essa perda progressiva da memória, a que chamam de doença de Alzheimer, aos poucos, mas de maneira violenta, rouba as suas lembranças. E um homem não é nada se não tem do que se lembrar.
Enfiado em uma poltrona azul, na sala de casa, aos poucos meu avô vai se afogando na sua melancolia. Feito um náufrago que apenas espera. O almoço que demora, o dia que não passa. A hora de colocar o lixo na rua. Esperando. Com o peso das horas lhe forçando os ombros e lhe tomando, aos poucos, a alegria de lembrar.
As histórias de quando vivia na roça. A valsa que animou seu casamento. Os passeios na bicicleta azul. O trabalho como engomador, como pintor de paredes. A companheira que já partiu. Tudo se apaga.
A princípio, a vida de alguém com a doença de Alzheimer é uma constante luta contra o esquecimento. Em seguida, a vítima se acostuma com a degeneração de suas lembranças e passa então a se acostumar - ou talvez a se entregar - à implacável ação do tempo. Como uma brisa que invade a sala e espalha mofo pelas paredes velhas, em vez de sacudir as cortinas.
Se um homem não é nada além das lembranças que carrega, quando perde sua capacidade mental ele deixa de existir integralmente e passa a viver de pequenos súbitos de lucidez. Como espectros de sanidade sufocados pela ação do tempo.
É incrível como apesar de tudo ainda existe, em homens como o meu avô, uma integridade e uma dignidade que não se fabricam mais. Mesmo quando ele se afunda na imensidão da sua poltrona azul. Mesmo quando ele se acostuma a esquecer o que foi. Talvez porque homens como aquele sejam feitos de outros tipos de átomos e emoções. E apesar de serem igualmente frágeis e inofensivos diante do peso do tempo, envelhecem lutando para não se esquecerem daquilo que Camões chamou de "a grande dor das coisas que passaram".

Texto publicado na revista Expressão Feedback, edição 125 (março de 2008).
Imagem: Clock Explosion, Salvador Dalí.

Nenhum comentário: