sexta-feira, 10 de março de 2017

João Gilberto, o maior brasileiro de todos

Em 2012, a convite de um amigo, escrevi o protótipo de uma coluna sobre livros para um projeto na internet que acabou não vingando. Passados quase cinco anos, encontrei o texto em algum lugar na minha caixa de e-mails. Ei-lo.


Chico Xavier? Esqueça. Se o Brasil fosse um país justo João Gilberto teria sido eleito o maior brasileiro de todos os tempos naquele já saudoso programa do SBT. Motivos para isso não faltam.

Como todo bom gênio incompreendido, João, o “o pai da bossa nova”, é um astro cheio de manias. Um excêntrico. João é o nosso Michael Jackson. Ele não é apenas recluso, é um ser socialmente morto. Um anônimo. João é o nosso J. D. Salinger. A diferença é que, ao contrário desses dois, João está vivo e trancado em um apartamento no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.

Mas como o assunto aqui é literatura, vamos manter o foco no que realmente importa: livros. Para ser mais exato, livros sobre João Gilberto.

Muito já se publicou sobre o músico baiano. A comemoração de seus 80 anos, no ano passado, rendeu novos textos e muitas homenagens. Nas livrarias, as duas melhores coisas sobre o nosso maior brasileiro de todos os tempos —o João, não o Chico— foram lançadas este ano. Dois livros excelentes e fundamentais. Seja para apreciadores da bossa nova ou do artista, seja para quem simplesmente gosta de ler.

Um deles mescla o fascínio pela genialidade de João com as lendas sobre o homem excêntrico que nunca sai de seu apartamento e não fala com ninguém. O outro evita o folclore em torno do músico e reúne bons textos e entrevistas passando em revista toda a sua trajetória.

O primeiro deles, “Ho-ba-la-lá: À Procura de João Gilberto", do alemão Marc Fisher (Companhia das Letras), é provavelmente a melhor coisa já escrita sobre João. O livro é uma espécie de equivalente verde-amarelo ao clássico “Frank Sinatra está Resfriado”, do Gay Talese, que escreveu um calhamaço de 100 páginas sobre o maior cantor de todos (depois do Elvis) sem trocar uma única palavra com ele. O resultado do texto sobre Sinatra? Apenas a maior história literária de não-ficção do século XX.

Em “Ho-ba-la-lá”, Fischer narra uma caçada para encontrar João Gilberto no Rio de Janeiro, entrevistá-lo e escrever a seu respeito. Se ele não quiser falar, tentará convencê-lo a tocar "Ho-ba-la-lá", sua música predileta, em um violãozinho centenário que o alemão carrega de um lado para outro durante o livro. A busca pelo artista é narrada à moda de uma história de detetive —inclusive com o escritor e sua auxiliar brasileira chamando-se um ao outro de Sherlock e Watson.

Logo no começo do livro, Fisher pergunta: “Para que encontrar um homem que, evidentemente, não deseja ser encontrado?˜. E ele mesmo responde, algumas linhas à frente: “Porque circulam histórias estranhas a seu respeito, e não se sabe quais são verdadeiras e quais são estapafúrdias, fantasiosas, inventadas”. Ao longo de quase 200 páginas, Fisher enfileira muitas dessas histórias. Desenvolve teorias, discute conspirações. E é em meio ao esforço do autor em localizar personagens e checar tanta coisa sobre o músico que está o que o livro tem de melhor. E também em seu texto estupendo, capaz de fazer qualquer pessoa que goste de escrever querer bater com a cabeça na parede de tanta inveja.

Garrincha, o ex-cozinheiro preferido do João, que nunca esteve com ele pessoalmente, lembra dos tempos em que o músico ligava no restaurante onde ele trabalhava, todas as noites, pontualmente às onze horas: “O que temos no cardápio, Garrincha?”. João fazia o cozinheiro ler todo o menu, comentava alguns pratos, perguntava sobre a qualidade das carnes. No final, pedia a mesma coisa de sempre: steak no sal grosso. Todos os dias. O mesmo prato, durante cinco anos. Um dia, simplesmente não ligou mais.

Também resultado de uma grande pesquisa, “João Gilberto” (Cosac Naify) vai na contramão de “Ho-ba-la-lá”, exceto pelo fascínio em torno do gênio que canta sussurrando acompanhado de banquinho e violão.

Com mais de 500 páginas, o livro é organizado por Walter Garcia, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e reúne muito do que já se escreveu de importante sobre João e que estava fora de circulação. Das primeiras entrevistas e perfis dos anos 50 a depoimentos de amigos e velhos parceiros musicais, “João Gilberto” tenta decifrar o enigma que é a obra do músico e deixa (quase) todo o resto de lado.

Diferentemente de “Ho-ba-la-lá” e do já clássico "Chega de Saudade", de Ruy Castro, esse é um livro para fãs iniciados. A começar pelo preço: você deixará metade de um salário mínimo na livraria para conseguir exibir esse belo tijolo na mesa de centro da sua sala.

Por muito menos que isso, “Ho-ba-la-lá” é um convite para morrer de amor pelo homem da música sobre o pato que vinha cantando alegremente (Quém! Quém!). Para morrer de amor pelo nosso maior popstar —nosso Michael Jackson, nosso J. D. Salinger. É um livro para quem gosta de ler, para quem gosta de música, para quem se interessa por histórias bem contadas ou simplesmente para quem quer ser como o João Gilberto quando tiver 81 anos (esse cara sou eu).

Minha questão preferida em “Ho-ba-la-lá” diz respeito às especulações sobre “a maldição de João”. Em entrevista ao escritor, o músico Roberto Menescal fala de pessoas que foram “contaminadas” e o avisa de que é preciso cuidado, pois João tem alguma coisa de sombrio. “Ele muda as pessoas com quem tem contato.” “De repente”, diz Menescal, “é capaz de você se tornar um amaldiçoado para todo o sempre”. Em dado momento, Marc Fisher confessa estar sentindo medo de fato.

Mais ao final, o autor assume que ninguém que esteve com João um dia será capaz de esquecê-lo. “É um anseio personificado”, diz o alemão. “Porque o único e verdadeiro anseio é aquele que ecoa eternamente num espaço infinito”. E conclui: “Essa é sua maldição”.

No final do ano passado, uma semana antes de sair a edição alemã de "Ho-ba-la-lá", Marc Fischer, às vésperas de completar 41 anos, suicidou-se em Berlim.

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